Aula de Teatro -
Concentração
Richard Boleslavski
Pseudônimo de Ryczard Srzednicki, Richard Boleslavski nasceu em Varsóvia, em 1889, e faleceu em Hollywood, em 1937. Aluno de Stanislávski, ator, diretor, cineasta, teórico e professor, chega aos Estados Unidos em 1923. Em Nova York cria uma espécie de ateliê
teatral, freqüentado por personalidades que formariam dentre as mais importantes do teatro americano, como Francis Fergusson, Stella Adler, Harold Clurman e Lee Strasberg. Boleslavski também produziu musicais na Broadway e dirigiu vários filmes. O presente artigo, extraído do livro A arte do ator (Editora Perspectiva, 2001, tradução de J. Guinsburg) tem como tema Concentração e foi escrito em forma de diálogo entre o mestre (Eu) e uma aluna imaginária (A Criatura) - apenas substituímos Criatura por “Ela”, já que o termo poderia soar um tanto estranho ao leitor.
(De manhã. Meu quarto. Uma batida
na porta)
Eu - Entre. (A porta se abre,
lenta e timidamente. Aparece uma bonita criaturinha de 18 anos. Ela me fita com
olhos bem abertos, assustados, e amassa violentamente a bolsa)
Ela - Eu...eu...Eu ouvi dizer que o senhor ensina arte dramática.
Ela - Eu...eu...Eu ouvi dizer que o senhor ensina arte dramática.
Eu - Não! Sinto muito. Arte não
pode ser ensinada. Possuir uma arte significa possuir talento. Isso é algo que
se tem ou não se tem. Você pode desenvolvê-lo com muito esforço, mas criar
talento é impossível. O que faço é ajudar a quem decidir trabalhar no palco a
desenvolver-se e educar-se para realizar um serviço honesto e consciente no
teatro.
Ela - Sim, é claro. Por favor, me
ajude. Eu simplesmente amo o teatro.
Eu - Não basta amá-lo. Quem não o
ama? Consagrar-se ao teatro, devotar a ele a vida inteira, dedicar-lhe todo o
pensamento e toda a emoção! Renunciar a tudo, submeter-se a tudo, por amor ao
teatro! E, mais do que tudo, estar pronto a dar tudo ao teatro - todo o nosso
ser - sem esperar que ele lhe dê nada em troca, nem sequer o menor grão daquilo
que lhe parece tão belo e tão cativante nele.
Ela - Sei disso. Eu já
representei um bocado na escola. Compreendo que o teatro faz sofrer. Não tenho
medo disso. Estou pronta a enfrentar qualquer coisa desde que possa
representar, representar, representar.
Eu - Mas suponha que o teatro não
queira que você represente, represente, represente.
Ela - Por que não haveria de querer?
Ela - Por que não haveria de querer?
Eu - Por não julgá-la, talvez,
talentosa.
Ela - Mas quando eu representei
na escola...
Eu - O que foi que você
representou?
Ela - Rei Lear.
Eu - Qual foi o seu papel nessa
pecinha?
Ela - O próprio Lear. E todos os
meus amigos, o nosso professor de Literatura e até tia Mary me disseram que
representei maravilhosamente bem e que eu tinha, sem dúvida, talento.
Eu - Perdoe-me, não é minha intenção criticar a boa gente que você mencionou, mas tem certeza de que são conhecedores abalizados em matéria de talento?
Eu - Perdoe-me, não é minha intenção criticar a boa gente que você mencionou, mas tem certeza de que são conhecedores abalizados em matéria de talento?
Ela - Nosso professor é muito
exigente. Ele mesmo trabalhou comigo no Rei Lear. É uma grande autoridade no
assunto.
Eu - Percebo, percebo. E a tia
Mary?
Ela - Ela conheceu o sr.
Belasco(1), pessoalmente.
Eu - Até aí, tudo bem. Mas você
pode me dizer como o seu professor, ao trabalhar com o Rei Lear, queria que
você representasse estas linhas, por exemplo: “Soprai ventos e estourai as
próprias bochechas! Bramai! Soprai!”
Ela - O senhor quer que eu
represente a passagem?
Eu - Não. Diga-me apenas como foi
que aprendeu a ler essas linhas. O que pretendia alcançar?
Ela - Eu tinha de ficar assim parada, com meus pés bem juntos, inclinar um pouco meu corpo para frente, erguer minha cabeça desse jeito, estirar meus braços para o céu e sacudir meus punhos. Depois, eu tinha de respirar profundamente e explodir numa gargalhada sarcástica: Ah! ah! ah! (Ela ri com um riso encantador e infantil. Somente uma feliz mocinha de 18 anos poderia rir desse jeito). Depois, como que amaldiçoando o céu, pronunciar tão alto quanto possível: “Soprai ventos e estourai as próprias bochechas! Bramai! Soprai!”
Eu - Obrigado. Isso é suficiente para me dar um claro entendimento de sua parte no Rei Lear, bem como uma idéia nítida de seu talento. Posso perguntar-lhe mais uma coisa? Poderia, por favor, dizer essa sentença, primeiro amaldiçoando os céus e depois sem os amaldiçoar. Mantenha somente o sentido da frase - apenas o seu pensamento. (Ela não pensa muito, está habituada a amaldiçoar os céus)
Ela - Eu tinha de ficar assim parada, com meus pés bem juntos, inclinar um pouco meu corpo para frente, erguer minha cabeça desse jeito, estirar meus braços para o céu e sacudir meus punhos. Depois, eu tinha de respirar profundamente e explodir numa gargalhada sarcástica: Ah! ah! ah! (Ela ri com um riso encantador e infantil. Somente uma feliz mocinha de 18 anos poderia rir desse jeito). Depois, como que amaldiçoando o céu, pronunciar tão alto quanto possível: “Soprai ventos e estourai as próprias bochechas! Bramai! Soprai!”
Eu - Obrigado. Isso é suficiente para me dar um claro entendimento de sua parte no Rei Lear, bem como uma idéia nítida de seu talento. Posso perguntar-lhe mais uma coisa? Poderia, por favor, dizer essa sentença, primeiro amaldiçoando os céus e depois sem os amaldiçoar. Mantenha somente o sentido da frase - apenas o seu pensamento. (Ela não pensa muito, está habituada a amaldiçoar os céus)
Ela - Quando você amaldiçoa os
céus, a gente diz isso assim: “Sooopraaai veeentooos! E Estooouuuraaai as
próprias bochechas! Braaamai! Sooopraaai!”(Ela se esforça muito para amaldiçoar
os céus, mas pela janela vejo o céu azul rindo-se da maldição. Faço o mesmo) E
se não é para amaldiçoá-los, devo fazer isso de uma outra maneira. Bem...não
sei como. Não é engraçado? Bem, desta maneira...(Ela fica atrapalhada e, com um
sorriso encantador, engolindo as palavras, pronuncia todas elas apressadamente,
numa nota só)
“Sopraiventoseestouraisasprópriasbochechasbramaisoprai!”(Ela fica inteiramente confusa e tenta destruir a sua bolsa. Pausa)
“Sopraiventoseestouraisasprópriasbochechasbramaisoprai!”(Ela fica inteiramente confusa e tenta destruir a sua bolsa. Pausa)
Eu - Que estranho! Você é tão
jovem e não hesita um instante em maldizer os céus! No entanto, não é capaz de
proferir tais palavras de maneira simples e direta para mostrar o seu
significado interno. Você quer tocar um Noturno de Chopin sem saber onde estão
as notas. Você careteia, você mutila as palavras do poeta e da emoção eterna, e
ao mesmo tempo você não possui a qualidade mais elementar de uma pessoa letrada
- a habilidade de transmitir de um modo lógico os pensamentos, sentimentos e
palavras de outra pessoa. Que direito tem você de dizer que trabalhou no
teatro? Você destruiu a própria concepção do termo Teatro. (Pausa. Ela me
encara com olhos de alguém inocentemente condenado à morte. A pequena bolsa
está no chão)
Ela - Quer dizer que nunca devo
representar?
Eu - E se eu disser nunca?
(Pausa. Os olhos dela mudam de expressão, com um agudo olhar indagador ela
sonda o fundo de minha alma e, vendo que não estou brincando, cerra os dentes e
tenta em vão esconder o que se passa em sua alma. Mas não adianta. Uma enorme
lágrima verdadeira escorre de um de seus olhos e, no mesmo momento, Ela me
enternece. Isto estraga completamente as minhas intenções. Ela se domina,
aperta os dentes e diz em voz baixa)
Ela - Mas eu vou representar. Nada mais tenho na vida. (Aos 18 anos sempre falam desta maneira. Mas, ainda assim, continuo profundamente sensibilizado)
Ela - Mas eu vou representar. Nada mais tenho na vida. (Aos 18 anos sempre falam desta maneira. Mas, ainda assim, continuo profundamente sensibilizado)
Eu - Então, muito bem. Devo
dizer-lhe que neste exato momento você fez mais pelo teatro ou, antes, por você
mesma no teatro, do que ao representar todos os seus papéis. Você acabou de
sofrer, agora mesmo; você sentiu profundamente. São duas coisas sem as quais
não se pode fazer qualquer arte e, em especial, a arte do teatro. Somente
pagando este preço pode-se atingir a felicidade da criação, a felicidade que
vem do nascimento de um novo valor artístico. Para prová-lo, vamos trabalhar
juntos, agora. Tentemos criar um pequeno mas efetivo valor artístico, segundo a
força de que você dispõe. Será o primeiro passo no seu desenvolvimento como
atriz. (Aquela enorme e belíssima lágrima fica esquecida. Desvaneceu-se algures
no espaço. Em seu lugar aparece um sorriso feliz e encantador. Eu nunca pensei
que a minha voz chiante pudesse provocar uma tal mudança) Ouça e responda com
sinceridade: você já observou alguma vez um especialista às voltas com algum
problema criativo, durante o seu trabalho? Um piloto, num transatlântico, por
exemplo, responsável por milhares de vidas, ou um biólogo trabalhando com o seu
microscópio, ou um arquiteto elaborando o projeto de uma ponte complicada, ou
um grande ator visto dos bastidores durante a interpretação de um belo papel?
Ela - Eu vi John Barrymore (2) dos bastidores, quando interpretava Hamlet.
Ela - Eu vi John Barrymore (2) dos bastidores, quando interpretava Hamlet.
Eu - E o que a impressionou mais
do que tudo enquanto observava o trabalho dele?
Ela - Ele estava maravilhoso!!!
Ela - Ele estava maravilhoso!!!
Eu - Eu sei disso, mas o que
mais?
Ela - Ele não me deu nenhuma
atenção.
Eu - Isso é mais importante. Não
somente a você ele não deu atenção, mas a nenhuma outra coisa à sua volta. Ele
estava procedendo como procederia o piloto, o cientista ou o arquiteto em seu
trabalho. Ele estava se concentrando. Lembre-se desta palavra: Concentração. É
da maior importância em qualquer arte e particularmente na arte do teatro. A
Concentração é a qualidade que nos permite dirigir todas as nossas forças
intelectuais e espirituais para um objeto definido e continuar a fazê-lo
enquanto nos agrade - por vezes, por um espaço de tempo bem maior do que nossa
energia física é capaz de suportar. Conheci um pescador que, durante uma
tempestade, não abandonou o leme de seu barco, por 48 horas, concentrando-se
até o último minuto no trabalho de guiar a sua escuna. Só depois de conduzi-la
a salvo de volta ao ancoradouro, permitiu que a fraqueza lhe dominasse o corpo.
Essa força, essa certeza de domínio sobre si mesmo, é a qualidade fundamental
de todo artista criativo. Você tem que achá-la dentro de si própria e
desenvolvê-la ao grau máximo.
Ela - Mas como?
Eu - Vou lhe dizer. Não tenha
pressa. O mais importante é que na arte do teatro faz-se necessário um tipo
especial de concentração. O piloto tem o sextante, o cientista seu microscópio,
o arquiteto seus desenhos - todos eles objetos de concentração e criação
visíveis, externos. Eles têm, por assim dizer, um alvo material em cuja direção
todas as suas forças são dirigidas. O mesmo acontece com o escultor, o pintor,
o músico, o escritor. Mas o caso do ator é muito diferente. Diga-me qual é o
objeto de concentração para ele?
Ela - Seu papel.
Eu - Sim, quando o tiver
aprendido. Mas só depois de estudar e ensaiar é que o ator começa a
criar. Ou digamos que primeiro ele cria “exploratoriamente” e na noite de estréia ele começa a criar “construtivamente” em sua representação. E o que é representar?
criar. Ou digamos que primeiro ele cria “exploratoriamente” e na noite de estréia ele começa a criar “construtivamente” em sua representação. E o que é representar?
Ela - Representar? Representar é
quando ele...representa, representa...Não sei.
Eu - Você quer dedicar a sua vida a uma tarefa, sem saber o que ela é? Representar é a vida da alma humana recebendo seu nascimento através da arte. Num teatro criativo o objeto de concentração do ator é a alma humana. No primeiro período de seu trabalho - o exploratório - o objeto de concentração é a própria alma do ator e dos homens e mulheres que o cercam. No segundo – o construtivo – só a sua própria alma. Isto significa que, para representar, você precisa saber como concentrar-se em algo materialmente imperceptível – em algo que você só pode perceber penetrando profundamente em seu próprio ser, reconhecendo aquilo que ficaria evidenciado na vida unicamente num momento de maior emoção e do mais violento embate. Em outras palavras, você necessita de uma concentração espiritual em emoções que não existem, mas são inventadas ou imaginadas.
Eu - Você quer dedicar a sua vida a uma tarefa, sem saber o que ela é? Representar é a vida da alma humana recebendo seu nascimento através da arte. Num teatro criativo o objeto de concentração do ator é a alma humana. No primeiro período de seu trabalho - o exploratório - o objeto de concentração é a própria alma do ator e dos homens e mulheres que o cercam. No segundo – o construtivo – só a sua própria alma. Isto significa que, para representar, você precisa saber como concentrar-se em algo materialmente imperceptível – em algo que você só pode perceber penetrando profundamente em seu próprio ser, reconhecendo aquilo que ficaria evidenciado na vida unicamente num momento de maior emoção e do mais violento embate. Em outras palavras, você necessita de uma concentração espiritual em emoções que não existem, mas são inventadas ou imaginadas.
Ela - Mas como é possível
desenvolver dentro de si algo que não existe? Como é possível começar?
Eu - Do próprio começo. Não de um Noturno de Chopin, porém das escalas mais simples. Tais escalas são os cinco sentidos que você possui: visão, audição, olfato, tato e paladar. Eles hão de ser as chaves de sua criação como se fossem uma escala para um Noturno de Chopin. Aprenda como governar esta escala, como concentrar-se com todo seu ser nos seus cinco sentidos, como fazê-los trabalhar artificialmente, como apresentar-lhes diferentes problemas e criar as soluções.
Eu - Do próprio começo. Não de um Noturno de Chopin, porém das escalas mais simples. Tais escalas são os cinco sentidos que você possui: visão, audição, olfato, tato e paladar. Eles hão de ser as chaves de sua criação como se fossem uma escala para um Noturno de Chopin. Aprenda como governar esta escala, como concentrar-se com todo seu ser nos seus cinco sentidos, como fazê-los trabalhar artificialmente, como apresentar-lhes diferentes problemas e criar as soluções.
Ela - Espero que não esteja
querendo dizer que eu não sei nem mesmo como ouvir ou sentir.
Eu - Na vida talvez você saiba. A natureza ensinou-lhe um pouco. (Ela se torna muito ousada e fala como que desafiando o mundo inteiro)
Eu - Na vida talvez você saiba. A natureza ensinou-lhe um pouco. (Ela se torna muito ousada e fala como que desafiando o mundo inteiro)
Ela - Não, no palco também.
Eu - É mesmo? Vejamos. Por favor,
sentada como está aí agora, ouça o arranhar de um rato imaginário naquele canto
ali.
Ela - Onde está o público?
Eu - Isso não importa. Seu
público, por enquanto, não está com pressa de comprar entradas para o seu
espetáculo. Esqueça-o. Resolva o problema que lhe dei. Ouça o ruído de um rato
arranhando o chão naquele canto.
Ela - Está bem. (Segue-se um
gesto canhestro com a orelha direita e depois com a esquerda, algo que nada tem
em comum com a tentativa de ouvir o delicado arranhar de uma unha de rato no
silêncio)
Eu - Está bem. Agora, por favor,
ouça uma orquestra sinfônica executando a marcha da ópera Aída. Você conhece a
marcha, não conhece?
Ela - Conheço sim, é evidente.
Eu - Então, por favor. (Acontece
a mesma coisa - nada a ver com o que seria ouvir uma marcha triunfal. Sorrio.
Ela começa a entender que algo está errado e fica confusa. Ela espera o meu
veredicto) Vejo que você percebe o quanto está desarmada, quão pouco distingue
a diferença entre o fazer inferior e o fazer superior.
Ela - O senhor me deu um problema
muito difícil.
Eu - É mais fácil amaldiçoar os
céus no Rei Lear? Não, minha cara, devo dizer-lhe com franqueza: você ainda não
sabe criar a menor e a mais simples porção de vida da alma humana. Você não
sabe concentrar-se espiritualmente. Não só não sabe como criar emoções e
sentimentos complicados, mas nem sequer domina ainda os seus próprios sentidos.
Tudo isso você terá de aprender através de árduos exercícios diários que eu
posso lhe prescrever aos milhares. E se você pensar bem, poderá inventar
sozinha outros mil.
Ela - Está certo. Vou estudar. Vou fazer tudo o que o senhor mandar. Depois serei atriz?
Eu - Ainda bem que me pergunta. É claro que não será atriz, ainda. Ouvir, olhar e sentir de ver verdade não é tudo. Precisa fazer tudo isso de centenas de modos. Suponha que esteja representando. O pano sobe e seu primeiro problema é ouvir o ruído de um carro que parte. Você terá de realizá-lo de tal forma que as mil pessoas sentadas no teatro naquele momento, cada qual concentrada em algum interesse particular - um na Bolsa de Valores, outro em preocupações domésticas, um terceiro na política, um quarto em um jantar ou na linda garota da poltrona vizinha - saibam e sintam imediatamente que a concentração deles é menos importante que a sua, embora você esteja se concentrando apenas no ruído da partida de um carro imaginário. Eles precisam sentir que não têm o direito de pensar na Bolsa em presença de um carro imaginário! Que você é mais poderosa que eles, que, no momento, você é a pessoa mais importante do mundo e que ninguém se atreva a perturbá-la. Ninguém se atreve a perturbar um pintor entregue ao seu trabalho, e é culpa do próprio ator se permite que o público interfira em sua criação. Se todos os atores possuíssem a concentração e o conhecimento de que estou falando, isso jamais aconteceria.
Ela - Está certo. Vou estudar. Vou fazer tudo o que o senhor mandar. Depois serei atriz?
Eu - Ainda bem que me pergunta. É claro que não será atriz, ainda. Ouvir, olhar e sentir de ver verdade não é tudo. Precisa fazer tudo isso de centenas de modos. Suponha que esteja representando. O pano sobe e seu primeiro problema é ouvir o ruído de um carro que parte. Você terá de realizá-lo de tal forma que as mil pessoas sentadas no teatro naquele momento, cada qual concentrada em algum interesse particular - um na Bolsa de Valores, outro em preocupações domésticas, um terceiro na política, um quarto em um jantar ou na linda garota da poltrona vizinha - saibam e sintam imediatamente que a concentração deles é menos importante que a sua, embora você esteja se concentrando apenas no ruído da partida de um carro imaginário. Eles precisam sentir que não têm o direito de pensar na Bolsa em presença de um carro imaginário! Que você é mais poderosa que eles, que, no momento, você é a pessoa mais importante do mundo e que ninguém se atreva a perturbá-la. Ninguém se atreve a perturbar um pintor entregue ao seu trabalho, e é culpa do próprio ator se permite que o público interfira em sua criação. Se todos os atores possuíssem a concentração e o conhecimento de que estou falando, isso jamais aconteceria.
Ela - Mas do que é que o ator
necessita para conseguir isso?
Eu - Talento e técnica. A
educação do ator consiste em três partes. A primeira é a educação do corpo, de
todo o complexo físico, de cada músculo e cada fibra. Como diretor, posso
dirigir muito bem um ator que tenha um desenvolvimento de corpo completo.
Ela - Quanto tempo deve gastar nisso um ator jovem?
Ela - Quanto tempo deve gastar nisso um ator jovem?
Eu - Uma hora e meia diárias nos
seguintes exercícios: ginástica, ginástica rítmica, dança clássica e
interpretativa, esgrima, todo o tipo de exercícios respiratórios e de
impostação de voz, dicção, canto, pantomima, maquilagem. Uma hora e meia por
dia, durante dois anos, e depois uma prática constante daquilo que tenha
aprendido farão dele um ator que agrade ver.
A segunda parte desta educação é intelectual, cultural. Só se pode discutir Shakespeare, Molière, Goethe e Calderon com um ator culto que saiba o que estes homens representam e o que se fez nos teatros do mundo para montar suas peças. Necessito de um ator que conheça literatura mundial e que possa perceber a diferença entre Romantismo francês e alemão. Necessito de um ator que conheça história da pintura, da escultura e da música, que possa sempre ter em mente, ao menos de um modo aproximado, o estilo de cada período e a individualidade de qualquer grande pintor. Necessito de um ator que tenha uma idéia bastante clara da psicologia do movimento, da psicanálise, da expressão da emoção e da lógica do sentimento. Necessito de um ator que conheça algo da anatomia do corpo humano, bem como das grandes obras de escultura. Todo esse conhecimento é necessário porque o ator entra em contato com tais coisas e tem de trabalhar com elas no palco. Este treino intelectual formaria um ator capaz de desempenhar uma variedade de papéis.
A terceira espécie de educação, cujo início eu lhe mostrei hoje, é a educação e o adestramento da alma – o fator mais importante da ação dramática. Não pode existir ator sem alma suficientemente desenvolvida para estar apta a realizar, à primeira ordem da vontade, toda e qualquer ação e mudança estipuladas. Em outros termos, o ator deve dispor de uma alma capaz de viver qualquer situação exigida pelo autor. Não há grande intérprete sem uma alma assim. Infelizmente ela só é adquirida por meio de longo e duro labor, à custa de muito tempo e experiência, e através de séries contínuas de papéis experimentais. O trabalho, para tanto, consiste no desenvolvimento das seguintes faculdades: completo domínio dos cinco sentidos em várias situações imagináveis, desenvolvimento da memória do sentimento, memória da inspiração, memória da imaginação e, por último, memória visual.
A segunda parte desta educação é intelectual, cultural. Só se pode discutir Shakespeare, Molière, Goethe e Calderon com um ator culto que saiba o que estes homens representam e o que se fez nos teatros do mundo para montar suas peças. Necessito de um ator que conheça literatura mundial e que possa perceber a diferença entre Romantismo francês e alemão. Necessito de um ator que conheça história da pintura, da escultura e da música, que possa sempre ter em mente, ao menos de um modo aproximado, o estilo de cada período e a individualidade de qualquer grande pintor. Necessito de um ator que tenha uma idéia bastante clara da psicologia do movimento, da psicanálise, da expressão da emoção e da lógica do sentimento. Necessito de um ator que conheça algo da anatomia do corpo humano, bem como das grandes obras de escultura. Todo esse conhecimento é necessário porque o ator entra em contato com tais coisas e tem de trabalhar com elas no palco. Este treino intelectual formaria um ator capaz de desempenhar uma variedade de papéis.
A terceira espécie de educação, cujo início eu lhe mostrei hoje, é a educação e o adestramento da alma – o fator mais importante da ação dramática. Não pode existir ator sem alma suficientemente desenvolvida para estar apta a realizar, à primeira ordem da vontade, toda e qualquer ação e mudança estipuladas. Em outros termos, o ator deve dispor de uma alma capaz de viver qualquer situação exigida pelo autor. Não há grande intérprete sem uma alma assim. Infelizmente ela só é adquirida por meio de longo e duro labor, à custa de muito tempo e experiência, e através de séries contínuas de papéis experimentais. O trabalho, para tanto, consiste no desenvolvimento das seguintes faculdades: completo domínio dos cinco sentidos em várias situações imagináveis, desenvolvimento da memória do sentimento, memória da inspiração, memória da imaginação e, por último, memória visual.
Ela - Mas eu nunca ouvi falar de
todas essas coisas.
Eu - No entanto, elas são quase
tão simples quanto “amaldiçoar os céus”. O desenvolvimento da fé na imaginação,
da própria imaginação, da ingenuidade, da observação, da força de vontade, da
capacidade de infundir variedade à expressão emotiva, do senso de humor e do
senso trágico. E isto não é tudo.
Ela - Será possível?
Eu - Só resta uma coisa que não
pode ser desenvolvida, mas que deve estar presente. É o talento. (Ela suspira e
cai em profunda meditação. Eu também permaneço sentado, em silêncio)
Ela - O senhor fez com que o teatro pareça algo muito grande, muito importante, muito...
Eu - Sim, para mim o teatro é um grande mistério, um mistério no qual se acham maravilhosamente unidos os dois fenômenos eternos: o sonho da Perfeição e o sonho do Eterno. Somente a um teatro assim vale a pena a gente dar a vida. (Levanto-me, Ela me fita com olhos desconsolados. Entendo o que esses olhos exprimem)
Ela - O senhor fez com que o teatro pareça algo muito grande, muito importante, muito...
Eu - Sim, para mim o teatro é um grande mistério, um mistério no qual se acham maravilhosamente unidos os dois fenômenos eternos: o sonho da Perfeição e o sonho do Eterno. Somente a um teatro assim vale a pena a gente dar a vida. (Levanto-me, Ela me fita com olhos desconsolados. Entendo o que esses olhos exprimem)
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1. David Belasco (1853-1951). Encenador, ator, dramaturgo, diretor de companhia. De uma família judio-portuguesa, ainda criança começou a trabalhar no palco. Adaptou e dramatizou numerosos textos estrangeiros e americanos. Descobriu e dirigiu alguns dos principais intérpretes americanos de seu tempo, como George Arliss. Pouco sensível às novas tendências teatrais, praticou um realismo extremo, esteado em peças de ação. Além de Madame Buterfly e de A moça do oeste dourado, ambas usadas como libretos por Puccini, escreveu obras dramáticas que se fizeram notar na cena teatral dos Estados Unidos.
2. John Barrymore (1882-1942). De uma família de famosos atores americanos, trabalhou no teatro e no cinema, notabilizando-se por suas interpretações de Shakespeare, entre outros.
LIONEL FISCHER
1. David Belasco (1853-1951). Encenador, ator, dramaturgo, diretor de companhia. De uma família judio-portuguesa, ainda criança começou a trabalhar no palco. Adaptou e dramatizou numerosos textos estrangeiros e americanos. Descobriu e dirigiu alguns dos principais intérpretes americanos de seu tempo, como George Arliss. Pouco sensível às novas tendências teatrais, praticou um realismo extremo, esteado em peças de ação. Além de Madame Buterfly e de A moça do oeste dourado, ambas usadas como libretos por Puccini, escreveu obras dramáticas que se fizeram notar na cena teatral dos Estados Unidos.
2. John Barrymore (1882-1942). De uma família de famosos atores americanos, trabalhou no teatro e no cinema, notabilizando-se por suas interpretações de Shakespeare, entre outros.
LIONEL FISCHER
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