Conversas sobre teatro
Domingos
Oliveira
A única coisa - única
- que realmente me interessa, é desenvolver minha capacidade de ouvir minha
voz interna. A voz interna existe e sempre nos diz o que devemos fazer. Nunca
está errada, é sublime, é música. Mas não grita. Fala mansamente, de modo que é
muito difícil ouvi-la. E cada vez mais difícil nos tempos que correm. Essa voz,
pelo menos até hoje, ordenou que eu trabalhasse muito, escrevesse, dirigisse,
contasse histórias. Que histórias? Também sobre isso não tive dúvidas: minhas
histórias.
Não importa se com
esta ou aquela tendência política, cultural, se velhas ou originais. Sou
artista, estou aqui para dar meu depoimento sobre o que vivo, sobre o mistério
da vida. Na certeza de que esse depoimento é único, insubstituível, portanto
importante. Um depoimento. Todas as pessoas têm o seu, e nenhum é, no critério
do eterno, melhor ou pior que o outro. Mas poucos têm a compulsão estranha e
inexplicável de prestá-lo. Estes se chamam artistas.
Grupo e indivíduo
Nunca duvidei de que sou artista. Porque isso depende da qualidade da
minha obra. A obra é um fato circunstancial. Não sei se o que faço é bom ou
mau, não cabe a mim julgar. Não tenho a menor idéia de como o mundo me vê. Sei,
porém, que minha visão do mundo é deslumbrante. Na medida em que eu puder
romper a alma e narrá-la, é nesta medida que todos cairão de joelhos e
chorarão, de alegria. Repito, isso não me envaidece. Não tem nenhum sentido
comparativo. Não me faz maior ou menor. Quer dizer apenas que sou um artista.
Por isso, tenho
uma personalidade individualizada. Na verdade não pertenci nunca a grupo
nenhum. Nem a partido político, corrente ideológica, clube, time, nem mesmo à
minha família; nem mesmo a mim mesmo...nunca realmente pertenci. Preciso da
alma vagabunda. Por mais que isso custe. Sem ela não sobrevivo. Este dado, esta
individualização além do normal, sempre me criou problemas de vários níveis.
Mas não me arrependo. Pedir a um artista que não seja especialmente
individualizado é o mesmo que pedir a um atleta que não seja especialmente
musculoso.
Ninguém extrai um bom
espetáculo de um mau texto. O texto é mais importante. Talvez pense assim por
ser escritor. Na verdade, gosto da atividade de diretor. A do ator me fascina,
mas, na verdade, somente as exerço para transmitir, sem distorções, o que o
autor criou.
Tenho dirigido nos
últimos anos várias peças. Melhores ou piores (a gente sempre faz o possível),
e a verdade é que vivo disso. Tenho tido uma estréia aproximadamente de quatro
em quatro meses, isso há dez peças. Levando em conta que, além de dirigir,
estou sempre em outras funções (autor, adpatador, ator, luz, trilha, cenários)
verifica-se que é muito trabalho. Isso não é bom.
Um querido amigo que tive sempre contava a história do mestre Zen. Um homem foi
procurá-lo no alto da montanha distante e disse: "Mestre, eu estudei muito
para vir aqui, aprofundei-me em filosofia, psicologia, matemática. Sou também
professor de literatura e artes, doutor em biologia e medicina...e só agora me
senti pronto para chegar ao Mestre e perguntar-lhe sobre a verdade da
vida". O Zen sorriu e ofereceu-lhe um chá. Serviu o chá pessoalmente e,
depois que a taça encheu, continuou inexplicavelmente a derramar o líquido. A
situação ficou embaraçosa. Nosso intelectual, perplexo e de calças molhadas.
Então, o Mestre docemente explicou: "O Senhor é como esta taça. Está
cheia. Não se pode botar mais nada dentro dela. Por favor, vá embora daqui,
esvazie um pouco e depois volte. Talvez então eu possa lhe dizer alguma coisa".
Tentando uma síntese, creio firmemente (conforme me ensinou o amigo Simão) que fazer parte
de um grupo (seja um grupo de teatro, uma nação ou um partido político) é
apenas uma etapa para chegar a outro lugar. O grupo é o caminho do indivíduo.
Quando um homem se individualiza (cumprindo assim uma potencialidade que
faz parte de sua essência), ele deixa de pertencer ao grupo e passa,
naturalmente, a ser seu líder. A contragosto, com certeza. Pois preferiria
estar livre dessa responsabilidade. Ainda assim ele é o líder, posto que o
grupo segue seus desígnios.
Como reunir pessoas para fazer teatro?
Que critérios conduzem à equipe mais produtiva?
Tenho visto vários modos diferentes de unir pessoas. Através das mesmas idéias, por
exemplo, como nos partidos políticos (ou nos grupos de teatro político). Não dá
certo depois de algum tempo. Pelo menos é o que tenho visto. As pessoas brigam,
disputam o poder depois de algum tempo. Os mais nobres ideais transformam-se
com rapidez espantosa em mesquinhas discussões. Nunca entendi bem por que, mas
as pessoas que têm as mesmas idéias conseguem discordar infinitamente sobre
elas. As reuniões, discussões ou seja que nome tiverem custam mais tempo e
tornam-se mais importantes que o projeto em si. Não dá certo, não é produtivo.
Pelo menos é o que tenho visto.
Esqueçamos então as idéias e caminhemos mais concreto: unamos as pessoas através de seus
interesses. O interesse comum, como nas grandes firmas e indústrias (ou nas
poucas companhias profissionais que possuímos). Não dá certo. Acaba dando nas
mesmas brigas, em geral por dinheiro e poder, exatamente como no caminho
político comentado acima. Não é produtivo. É feio. Nem pelas idéias nem pelos
interesses. Como, então?
Existe um terceiro critério, o único no qual estou interessado. Embora este ainda não
esteja tão codificado como os anteriores. Unir as pessoas que se gostam. Não
sei o que é gostar, mas quem gosta sabe que gosta. Há pessoas que não vejo há
muito, encontro na rua e parece que foi ontem: a gente se gosta. Há pessoas que
têm interesses completamente desinteressantes, e eu gosto. Pessoas que pensam
completamente diferente, e eu gosto. Às vezes gosto de pessoas que não pensam,
às vezes gosto de pessoas que detesto! Por ser indefinível, este critério, o do
amor, possui grande flexibilidade. É por este critério que as pessoas devem se
reunir para fazer teatro. Ou para fazer outra coisa qualquer. Este é o único
critério inteligente. Conduz ao único tipo de união verdadeiramente...produtiva.
Como receber opiniões?
Antes de estrear um trabalho, é preciso que saibamos o seguinte: é natural e obrigatório
que muita gente não goste dele, seja qual for. Quanto menos convencional o
espetáculo, mais chance isso tem de acontecer. Quando é exageradamente
convencional, também muitos não gostam. Quando é muito ruim, também muitos não
gostam.
Se o espetáculo é informal, natural que os formais não gostem. Se é livre, os
reprimidos não gostarão. Se for muito pessoal, será antagonizado pelos amantes
do coletivo. E vice-versa. Se tiver ótimo astral ou vier depois de um sucesso
anterior causará corrosivas invejas. E assim por diante. Observemos que todas
essas opiniões contrárias independem da qualidade do espetáculo. Entendem o que
quero dizer? Mesmo que seja ótimo, tudo o que se disse acima acontecerá.
Não devemos esquecer também que, segundo a mais óbvia psicologia, são as pessoas altamente
dependentes que apresentam maior agressividade na crítica. A crítica corrosiva
é um método eficaz para pessoas de baixa auto-estima. Ao expressarem sua
opinião negativa criam a ilusão de que, se fossem elas a fazer "aquela
merda", teriam feito melhor. O exemplo clássico é o do passageiro do banco
de trás do automóvel, ditando ao motorista como ele deve guiar. Aliás, a
maioria das pessoas desse tipo não dirige automóvel.
Claro que isto não
exclui a pergunta, que devemos constantemente nos fazer, se nosso espetáculo é
bom ou ruim. Nosso espetáculo é bom, senão o teríamos feito de outra forma.
Pode ser também que tenhamos enlouquecido, que sejamos umas bestas e que, no
que se refere à platéia que virá ao teatro ou à eternidade da espécie, não
tenhamos nenhuma significação. Mas se isso estiver acontecendo, não teremos a
menor possibilidade de descobri-lo! O que signifca que essas hipóteses não
merecem um segundo de preocupação, sendo fútil gastar energia com elas.
O valor do nosso trabalho não depende da opinião dos outros. Faremos tudo
para que eles gostem, sem dúvida. Mas se não gostaram é porque não entenderam.
Posto que representaremos com prazer, mãos estendidas e coração aberto. A boa intenção
é tudo que se pode exigir no teatro. Uma peça é apenas uma peça. O teatro é
sempre uma festa. Estão chegando as pessoas, o grande momento de amor se
aproxima. Divirtam-se.
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Extraído de Do tamanho da vida - reflexões sobre o teatro.
(Minc-INACEM, Coleção Documentos, 1987)