quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Bertold Brecht - A Nova técnica de representar

A nova técnica da arte de representar

Bertolt Brecht

Tentarei descrever uma técnica de representação utilizada para distanciar os acontecimentos apresentados ao espectador. O objetivo desta técnica do efeito de distanciamento é conferir ao espectador uma atitude analítica e crítica perante o desenrolar dos acontecimentos. Os meios empregados para tal são de natureza artística.

Para a utilização deste efeito, segundo o objetivo já mencionado, é condição necessária que no palco e na sala de espetáculos não se produza qualquer atmosfera mágica e que não surja também nenhum "campo de hipnose". Não se intenta, assim, criar em cena a atmosfera de um determinado tipo de espaço (um quarto à noitinha, uma rua no outono), nem tampouco produzir, através de um ritmo adequado da fala, determinado estado de alma.

Não se pretende "inflamar" o público dando-se rédea solta ao temperamento, nem "arrebatá-lo" com uma representação bem feita de músculos contraídos. Não se aspira, em suma, pôr o público em transe e dar-lhe a ilusão de estar assistindo a um acontecimento natural, não ensaiado. Como se verá a seguir, a propensão do público para se entregar a uma tal ilusão deve ser neutralizada por meios artísticos.

É condição necessária para se produzir o efeito de distanciamento que, em tudo o que o ator mostre ao público, seja nítido o gesto de mostrar. A noção de uma quarta parede que separa fisicamente o palco do público e da qual provém a ilusão de o palco existir, na realidade, sem o público, tem de ser naturalmente rejeitada, o que, em princípio, permite aos atores voltarem-se diretamente para o público.

O contato entre o público e o palco fica, habitualmente, na empatia. Os esforços do ator convencional concentram-se tão completamente na produção deste fenômeno psíquico que se pode dizer que nele, somente, se descortina a finalidade principal da sua arte. As minhas palavras iniciais, ao tratar desta questão, desde logo revelam que a técnica que causa o efeito de distanciamento é diametralmente oposta à que visa a criação da empatia. A técnica de distanciamento impede o ator de produzir o efeito da empatia.

No entanto, o ator, ao esforçar-se para reproduzir determinadas personagens e para revelar o seu comportamento, não precisa renunciar completamente ao recurso da empatia. Servir-se-á deste recurso na medida em que qualquer pessoa sem dotes nem pretensões teatrais o utilizaria para representar outra pessoa, ou seja, para mostrar o seu comportamento.

Todos os dias, em inúmeras ocasiões, se vêem pessoas a mostrar o comportamento de outras (as testemunhas de um acidente demonstram aos que vão chegando o comportamento do acidentado; este ou aquele brincalão imita, trocista, o andar insólito de um amigo etc.), sem que estas pessoas tentem induzir os espectadores a qualquer espécie de ilusão. Contudo, tanto as testemunhas do acidente como o brincalhão, por exemplo, é por empatia para com as suas personagens que se apropriam das particularidades destas.

O ator utilizará, portanto, como ficou dito, este ato psíquico. Deverá consumá-lo, porém - ao invés do que é hábito no teatro, em que tal ato é consumado durante a própria representação e com o objetivo de levar o espectador a um ato idêntico - apenas numa fase prévia, em qualquer momento da preparação do seu papel, nos ensaios.

Para evitar que a configuração dos acontecimentos e das personagens seja demasiado "impulsiva", simplista e desprovida do mínimo aspecto crítico, poderá realizar-se maior número de ensaios à "mesa de estudo" do que habitualmente se faz. O ator deve rejeitar qualquer impulso prematuro de empatia e trabalhar o mais demoradamente possível, como leitor que lê para si próprio (e não para os outros). A memorização das primeiras impressões é muito importante.

O ator terá que ler o seu papel assumindo uma atitude de surpresa e, simultaneamente, de contestação. Deve pesar prós e contras e apreender, na sua singularidade, não só a motivação dos acontecimentos sobre o que versa a sua leitura, mas também o comportamento da personagem que corresponde ao seu papel e do qual vai tomando conhecimento. Não deverá considerar este como pré-estabelecido, como "algo para que não havia, de forma alguma, outra alternativa". Antes de decorar as palavras, terá de decorar qual a razão da sua surpresa e em que momento contestou. Deverá incluir na configuração do seu papel todos estes dados.

Uma vez em cena, em todas as passagens essenciais, o ator descobre, revela e sugere, sempre em função do que faz, e tudo o mais que não faz. Que dizer, representa de forma que se veja, tanto quanto possível claramente, uma alternativa, de forma que a representação deixe prever outras hipóteses e apenas apresente uma entre variantes possíveis. Diz, por exemplo, "isto você há de me pagar", e NÃO diz "está perdoado". Odeia os filhos e não procura aparentar que os ama. Caminha para a frente, à esquerda, e não para trás, à direita. O que não faz tem de estar contido no que faz, em mútua compensação. Então todas as frases e gestos adquirem o significado de decisões, a personagem fica sob controle e é examinada experimentalmente. A designação técnica deste método é: determinação do não-antes-pelo-contrário.

O ator, em cena, jamais chega a metamorfosear-se integralmente na personagem representada. O ator não é nem Lear, nem Harpagon: antes, os representa. Reproduz sua falas com a maior autenticidade possível, procura representar sua conduta com tanta perfeição quanto sua experiência humana o permite, mas não tenta persuadir-se (e dessa forma persuadir, também, os outros) de que neles se metamorfoseou completamente. Será fácil aos atores entenderem o que se pretende se, como exemplo de uma demonstração sem metamorfose absoluta, indicar-se a forma de representar de um encenador ou de um ator que estejam mostrando como se deve fazer determinado trecho de uma peça. Como não se trata do seu próprio papel, não se metamorfoseiam completamente, acentuam o aspecto técnico e mantêm a simples atitude de que está fazendo uma proposta.

Se tiver renunciado a uma matamorfose absoluta, o ator nos dará o seu texto não como uma improvisação, mas como uma citação. Mas, ao fazer a citação, terá, evidentemente, de dar-nos todos os matizes de sua expressão, todo o seu aspecto plástico humano e concreto; identicamente, o gesto que exibe aparecerá como uma cópia e deverá ter o caráter material de um gesto humano.

Numa representação em que não se pretenda uma metamorfose integral, podem utilizar-se três espécies d recursos para distanciar a expressão e a ação da personagem representada:

1 - Recorrência à terceira pessoa.
2 - Recorrência ao passado.
3 - Intromissão de indicações sobre a encenação e de comentários.

O emprego da forma da terceira pessoa e do passado possibilitam ao ator a adoção de uma verdadeira atitude distanciada. Além disso, o ator deve incluir em seu desempenho indicações sobre a encenação e também expressões que comentem o texto, proferindo-as juntamente com este, no ensaio. ("Ele levantou-se e disse, mal-humorado, pois não tinha comido nada..." ou "Ele ouvia aquilo pela primeira vez, e não sabia se era verdade...", ou ainda "Sorriu e disse, com demasiada despreocupação..."). A intromissão de indicações na terceira pessoa sobre a forma de representar provoca a colisão de duas entoações, o que, por sua vez, provoca o distanciamento da segunda pessoa (o texto propriamente dito).

A representação distanciar-se-á também se a sua ralização efetiva for precedida de uma descrição verbal. Neste caso, a adoção do passado coloca a pessoa que fala num plano que lhe permite a retrospecção das falas. Desta forma, distancia-se a fala, sem que o orador assuma uma perspectiva irreal; com efeito, este, ao contrário do auditório, já leu a peça até o fim e pode, pois, pronunciar-se sobre qualquer fala, partindo do desfecho e das consequências, melhor do que o público que sabe menos do que ele e que está, portanto, como que alheio à fala.

É pela conjugação destes processos que se distancia o texto nos ensaios; mas também durante a representação o texto se mantém, de maneira geral, distanciado. Quanto à dicção propriamente dita, da sua relação direta com o público, sobrevém-lhe a necessidade e a possibilidade de uma variação que será conforme o grau de importância a conferir às falas. O modo de falar das testemunhas, num tribunal, oferecem-nos um bom exemplo disto.

A maneira de a personagem frisar as suas declarações deverá produzir um efeito artístico especial. Se o ator se dirigir diretamente ao público, deve fazê-lo francamente, e não num mero "aparte", nem tampouco num monólogo do estilo dos do velho teatro. Para extrair do verso um efeito de distanciamento pleno, será conveniente que o ator reproduza, primeiro, em prosa corrente, nos ensaios, o conteúdo dos versos, acompanhado, em certas circunstâncias, dos gestos para ele estabelecidos. Uma estruturação audaciosa e bela das palavras distancia o texto. (A prosa pode ser distanciada por tradução para o dialeto natal do ator).

Dos gestos propriamente nos ocuparemos depois; mas desde já devemos dizer que todos os elementos de natureza emocional têm de ser exteriorizados, isto é, precisam ser desenvolvidos em gestos. O ator tem de descobrir uma expressão exterior evidente para as emoções de sua personagem, ou então uma ação que revele objetivamente os acontecimentos que se desenrolam em seu íntimo. A emoção deve manifestar-se no exterior, emancipar-se, para que seja possível tratá-la com grandeza. A particular elegância, força e graça do gesto provocam efeito de distanciamento. A arte chinesa é magistral no tratamento dos gestos. O ator chinês alcança o efeito de distanciamento por observar abertamente seus próprios gestos.

Tudo o que o ator nos dá, no domínio do gesto, do verso etc., deve denotar acabamento e apresentar-se como algo ensaiado e concluído. Deve criar uma impressão de facilidade, impressão que é, no fundo, a de uma dificuldade vencida. O ator deve, também, permitir ao público uma recepção fácil da sua arte, do seu domínio da técnica. Representa o acontecimento perante o espectador, de uma forma perfeita, mostrando como esse acontecimento, a seu ver, se passa ou como terá, porventura, se passado. Não oculta que o ensaiou, tal como o acrobata não oculta o seu treino; sublinha claramente que o depoimento, a opinião ou a versão do passado que está nos dando são seus, ou seja, os de um ator.

Visto que não se identifica com a personagem que representa, é possível escolher uma determinada perspectiva em relação a esta, revelar sua opinião a respeito dela, incitar o espectador - também, por sua vez, não solicitado a qualquer indicação - a criticá-la. A perspectiva que adota é crítico-social. Estrutura os acontecimentos e caracteriza as personagens realçando todos os traços a que seja possível dar um enquadramento social. Sua representação tranforma-se, assim, num colóquio sobre as condições sociais, num colóquio com o público, a quem se dirige. O ator leva seu ouvinte, conforme a classe a que este pertence, a justificar ou a repudiar tais condições.

O objetivo do efeito de distanciamento é distanciar o "gesto social" subjacente a todos os acontecimentos. Por "gesto social" deve enterder-se a expressão mímica e conceitual das relações sociais que se verificam entre os homens de uma determinada época.

A invenção de títulos para as cenas facilita a explicação dos acontecimentos, do seu alcance, e dá à sociedade a chave desses acontecimentos. Os títulos deverão ser de caráter histórico.

Chegamos assim a um método decisivo, a historiação dos acontecimentos. O ator deve representar os acontecimentos dando-lhes o caráter de acontecimentos históricos. Os acontecimentos históricos são acontecimentos únicos, transitórios, vinculados a épocas determinadas. O comportamento das personagens dentro desses acontecimentos não é, pura e simplesmente, um comportamento humano e imutável, reveste-se de determinadas particularidades, apresenta, no decurso da história, formas ultrapassadas e ultrapassáveis e está sempre sujeito á crítica da época subsequente, crítica feita segundo as perspectivas desta. Esta evolução permanente distancia-nos do comportamento dos nossos predecessores.

Ora, o ator tem de adotar para com os acontecimentos e os diversos comportamentos da atualidade uma distância idêntica à que é adotada pelo historiador. Tem de nos distanciar dos acontecimentos e das personagens. Os acontecimentos e as pessoas do dia-a-dia, do ambiente imediato, possuem, para nós, um cunho de naturalidade, por nos serem habituais. Distanciá-los é torná-los extraordinários. A técnica da dúvida, dúvida perante os acontecimentos usuais, óbvios, jamais postos em dúvida, foi cuidadosamente elaborada pela ciência, e não há motivo para que a arte não adote, também, uma atitude tão profundamente útil como essa. Tal atitude adveio à ciência do crescimento da força produtiva da humanidade, tendo-se manifestado na arte exatamente pela mesma razão.

No que diz respeito ao aspecto emocional, devo dizer que as experiências do efeito de distanciamento realizados nos espetáculos de teatro épico, na Alemanha, levaram-nos a verificar que também se suscitam emoções por meio dessa forma de representar, se bem que emoções de espécie diversa das do teatro corrente. A atitude do espectador não será menos artística por ser crítica. O efeito de distanciamento, quando descrito, resulta muito menos natural do que quando realizado na prática. Esta forma de representar não tem, evidentemente, nada a ver com a vulgar "estilização". O mérito principal do teatro épico - com o seu efeito de distanciamento, que tem por único objetivo mostrar o mundo de tal forma que este se torne suscetível de ser moldado - é justamente a sua naturalidade, o seu caráter terreno, o seu humor e a renúncia a todas as espécies de misticismo, que imperam ainda, desde tempos remotos, no teatro vulgar.
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Extraído de Estudos sobre Teatro (Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1978). O presente artigo está publicado na revista Cadernos de Teatro nº 82/1979, edição já esgotada.
Postado por Lionel Fischer às 15:40 0 comentários

Stanislavski - A preparação do ator (resumo)

Em um dos capítulos do seu livro a preparação do ator, Stanislavski classifica atuação e as várias formas que um ator pode interpretar. Para darmos início ele declara que viver um papel é ser coerente,lógico,sentir e agir de acordo com o papel proposto. O objetivo principal é criar uma vida interior do espírito humano e ao mesmo tempo dar expressão em forma de arte.Para chegar a esse objetivo alguns passos tem que ser dados pelo ator: 1) Planejar o papel conscientemente: Estudar tudo o que acontece na vida da personagem (onde ele vive, pensa, o contexto de sua época, etc.) 2) Atuar com veracidade: Agir de acordo como foi estudado. Existem outras formas incorretas que segundo o autor um ator pode interpretar: 1) Atuação forçada: São momentos isolados de atuação.Segundo Stanislavski acontecem "Grandes vôos". 2) A arte da representação: Pode ser confundido com a verdadeira representação. O que acontece é que um ator consegue viver um papel, mas logo se torna uma fase inicial. Quem está atuando repete a mesma atuação inúmeras vezes tornando assim uma cópia do real. 3)Atuação mecânica: Não há lugar para processos naturais e vivos. Quem atua desse modo se baseia em clichês e emoções falsas. 4)Atuação exagerada: Muito parecida com a mecânica. A grande diferença se identifica que na mecânica se usa estereótipos elaborados, feitos. Já na exagerada essas convenções são usadas a esmo, sem nenhum critério. 5) Exploração da arte: Talvez a pior delas. Quem se utiliza disso usa apenas para o próprio benefício e nunca para o bem da arte. Para se atuar verdadeiramente alguns passos são dados pelo autor: * Evitar as maneiras incorretas e estudar os fundamentos para viver o papel. *Não repetir o erro. *Nunca representar algo que não sentiu intimamente ou que não interessa.

Aqui apresento o que aborda cada capítulo de seu livro.

Capítulo I A primeira prova


O primeiro capítulo trata-se do registro de impressões sobre o estudo do Teatro, a partir das experiências dos estudantes, do diretor e do assisttente de direção, nesta turma que inicia o trabalho. O diretor pede aos alunos que elaborem uma cena, à sua escolha. Num primeiro momento pensam em coisas mais simples, mas depois, influenciados pelos colegas acabam por escolher Shakespeare. Eles ficam alguns dias ensaiando livremente, ou seja, de acordo com as suas referências de memória para criar as cenas e as personagens. Kóstia escolheu “Otelo” para representar, formando dupla com Paulo. No dia seguinte, chega atrasado no primeiro ensaio o que causou um constrangimento entre os colegas, ele e o assistente de direção. Que falou sobre a importância de guardar a melhor impressão do primeiro trabalho na vida de um artista. E, também, sobre o comprometimento com o grupo. Aqui fala da ‘vontade criadora’. E da disciplina que um ator precisa ter/adquirir. O atraso deveu-se a ele ter ficado se familiarizando com o papel de Otelo. Teve várias idéias atarvés de suas percepções, como o aspecto que o Mouro deve ter, por exemplo. Ele foi sempre repetindo a sua forma de ensaiar, de atuar. No primeiro ensaio entre Paulo e Kóstia, surgiu uma diferença com relação à concepção e da maneira de estudar o papel. O 1º se interessava pelos aspectos interiores da personagem, enquanto que para o 2º, o ambiente exterior era mais importante. Kóstia sentiu extrema dificuldade para se adaptar ao local de ensaio, que não era o seu quarto. Ele precisava de todas aquelas referências para resgatar a sua inspiração. E, nada do que havia pre-determinado, sozinho, se encaixava com a atuação de Paulo. Ficando claro, aqui, a importância de relacionar o papel com o contexto da história e com as outras personagens. Ele começa a questionar-se o por quê de sempre estar fazendo a mesma coisa em seus ensaios. Então, quando é obrigado a mudar o local de ensaio e a falar em voz baixa, percebe que seu ‘estado de alma’ se transformou. No ensaio, resolveu improvisar, mas se atrapalhou e esqueceu o texto. Concluiu que seus métodos o estavam dominando. Paulo e Kóstia começam a se entrosar nos ensaios. Mas quando forma para o grande palco, Kóstia se perde, porém, continua atuando mecânicamente – falta de concentração, ambinte estranho. Referência à importância dos exercícios caseiros. Mais uma vez no palco, percebe que precisa se ajsutar ao espaço. Mas era difícil. Eles íam mostrar para os colegas os seus trabalhos. Menciona o querer “se livrar” de apresentar o exercício e da ansiedade. No ensaio posterior a esse, foi maquiado, estava figurinado. Mas, no palco, representou mecânicamente, queria acabar depressa e ir pra casa. No dia da prova de atuação sentiu mais fortes o temor e a atração do público. Porém o seu esforço para exprimir mais emoção do que sentia deixou-o impotente e com raiva, na hora de uma fala importante do texto, jogou esses sentimentos nela. Esse “sentir” despertou nele a emoção. Então uma ‘energia’ deixou-o livre de qualquer temor. E conseguiu atuar com abandono, naquele momento, o que se refletiu em Paulo também. “Uma entrada, uma palavra e o sentimento se transmite.”


Capítulo II Quando atuar é uma arte


O diretor falhou-lhes sobre suas atuações. Kóstia entregou-se total e viveu verdadeiramente o papel ao falar a frase. Pórem, o restante de sua cena, ficou vago, sem vida, apenas esperando a inspiração surgir. Ela depende do subconsciente que depende do consciente.O grande objetivo é dar vida a um espirito humano e expressá-lo em forma artística. Para viver o papel precisamos estar com nossa aparelhagem física e vocal em perfeitas condições, estudar a psicologia, tempo, país, literatura, dicção,, entonação, alma do personagem e assim criá-lo. Esta é a verdadeira arte “criar”.O espelho deve ser quebrado, não serve para construção do personagem, pois reflete o exterior e não o interior. Assim como a atuação mecânica, que nada mais é do que gestos e costumes repetitivos que apenas são usados nos clichês, momentos de não expressão dos sentimentos.

Para tudo isso deve-se escolher se quer vive a arte intensamente, ou apenas demostrar beleza e fazer carreira. A prova pública estabelecida mostrou a eles o que nunca devem fazer em cana.


Capítulo III – Ação


Quando estamos em cena, precisamos de um elemento básico a Ação. Esta vem sempre precedida de um objetivo e para ativar nossa imaginação utilizamos o poder do se. O se age como ponto de partida e o desenvolvimento da cena envolve uma série de circunstâncias dadas, como todo um espaço físico criado ao redor do ator. Tendo estas bases a emoção verdadeira vem à tona espontaneamente.


Capítulo IV – Imaginação


A imaginação é um Dom do ator, do escritor, do artista, etc. Imaginar é um sonho.

Quando temos um, imaginamos ele e o construímos em nossas mentes. Imaginar
também é responder. Para respondermos alguma pergunta precisamos pensar, imaginar,uma situação que responda a pergunta. A imaginação surge através de uma seqüência deses e forma na maioria das vezes uma história. Imaginar é criar, todos temos, basta trabalha-la..


Capítulo V – Concentração da atenção


Para fugir do auditório, precisamos ficar interessados em alguma coisa no palco. O ator deve ter um ponto de atenção no qual não pode estar no auditório. O ator precisa reaprender a olhar as coisas, no palco e vê-las. Ao firmar seu olhar em algum objeto, leva o público à perceber o que ele está olhando, qual seu objetivo. O ator encaminha o público. Essa é a nossa atenção exterior. Atenção interior significa olhar um objeto e saber se gostamos ou não dele. Ele é feio? Bonito? Observamos o interior da alma de uma pessoa, sabendo o que ela está sentindo, observando seus olhos. Pode ser tarefa difícil, porém se a pessoa permitir, vazará seus sentimentos através do olhar.


Capítulo VI – Descontração dos músculos


Precisamos descontrair os músculos, livrar-nos das tensões musculares, para podermos pensar e atuar. Exercícios de relaxamento, como concentrar seu ponto gravitacional em uma determinada pose, quando alguns de seus músculos estão tensos. Nunca deve haver em cena uma pose sem base, precisa de um objetivo: como o de erguer a mão direita sobre a cabeça, imaginar uma árvore com um pêssego delicioso, meu objetivo a partir de agora será pegar o pêssego. O pêssego e a árvore são as circunstâncias dadas para o desenvolvimento da ação. Esta é a ação da natureza sobre nós.


Capítulo VII – Unidades e Objetivos


Usamos unidades pequenas apenas na preparação do papel. Unidades são fragmentos da peça. Unidades maiores, usadas na criação do personagem são reduzidas a unidades menores, respectivamente. Unidades também se aplicam aos objetivos. Por isso, precisamos evitar o inútil e selecionar objetivos essencialmente certos, esses devem: estar do nosso lado da ribalta, ser pessoais, criadores e artísticos, verdadeir


Capítulo IX – Memória das emoções


Memória das emoções significa lembrar do seu sentimento vivido em uma cena anterior e reproduzi-lo novamente. Tudo isso dá-se graças a capacidade visual e auditiva do ator. Os aspectos exteriores na hora da cena, são fundamentais para o ator formular o interior de seu papel e sentir suas emoções. Isto depende muito do diretor. Para que tudo isso ocorra é necessário um estímulo interior que vem a partir de objetivos reais, verdadeira ação física e a crença que se tem nela. É por isso que precisamos saber estudar sempre mais sobre o mundo que nos cerca, pessoas, raças, sociedade, cultura para podermos saber interpretar o papel que nos é concebido.


Capítulo X – Comunhão


A comunhão ocorre em cena, quando atores trocam sentimentos, pensamentos e ações através do olhar, pois os olhos são o espelho da alma.
A autocomunhão acontece quando falamos com nós mesmos, sentimos a corrente interior da comunicação, escolhendo nosso sujeito e objeto. No caso de Torstov escolheu o plexo solar e o cérebro, dos quais teve um significativo resultado. A comunhão interior é uma das mais importantes fontes de ação. Para que possamos ter realmente a comunhão precisamos:
1) encontrar o seu objeto real em cena e entrar em comunicação ativa com ele;
2) reconhecer os falsos objetos, as relações falsas, e combatê-los. Prestar atenção aqualidade do material espiritual em que buscaram sua comunicação com os outros. Tente encontrar alguém que possa trocar sentimentos com você e assim estabeleça uma comunhão.


Capítulo XI – Adaptação


Adaptação significa os meios humanos internos e externos, que as pessoas usam para ajustarem uma às outras, como auxílio para afetar um objeto. Isto é, convencer alguém de alguma coisa que não é real.
Adaptações intuitivas ocorrem quando estimulamos algo para chegar ao nosso subconsciente. Quando imaginamos algo que não faz parte do momento que estamos vivendo, que não tem relação. Isso quer dizer que passamos pelo nosso subconsciente.
Temos vários tipos de adaptações, basta escolhermos um sentimento e o tomarmos como base para poder atuar.


Capítulo XII – Forças motivas interiores


Precisamos de um mestre para tocar nossas forças motivas interiores. Possuímos três:

1) Sentimento
2) Mente
3) Vontade.
Todos se interligam e formam um único objetivo: o de motivar-nos.


Capítulo XIII – A linha contínua


Estabelecemos uma linha entre o nosso passado, presente e futuro, linhas ininterruptas, mas que juntas formam um dia. Uma linha continua de como foi seu dia. Como acordei? Como estou agora? Como irei dormir? Existem várias linhas, curtas, compridas, dias, semanas, meses, anos, vidas que formam uma sequência lógica. Por isso, quando lemos uma peça e interpretamos um papel, precisamos estabelecer uma linha continua, ler quantas vezes necessário e perceber o máximo de conhecimento que a peça nos oferece.


Capítulo XIV – O estado interior da criação


As nossas forças motivas interiores combinam-se com nossos elementos mestres: sentimento, mente e verdade para procurar nosso objetivo. A platéia aterroriza o ator, mas também o estimula fazendo com que desperte sua energia criadora. Precisamos estar concentrados na cena, não na platéia e nem fora do teatro, caso contrário não conseguimos sentir, pensar, mover-se, ou seja, atuar. Salvini disse: “O ator vive, chora e ri em cena e , o tempo todo, está vigiando suas próprias lágrimas e sorrisos. É esta dupla função, este equilíbrio entre a vida e a atuação que faz sua arte.” Por isso, precisamos estudar o papel para podermos ativar nosso estado interior de criação.


Capítulo XV – O Superobjetivo


Todo objetivo individual leva ao superobjetivo, que precisa ter uma nome coerente, de impacto com a peça, que exprima ação e verdade. Sem ele não temos verdade apenas superficialidades. A linha direta da ação e o Superobjetivo andam juntos na mesma direção.


Capítulo XVI – No limiar do subconsciente


Quando acreditamos em algo que não é real, imaginamos que estamos mortos, mas não estamos, assim alcançamos o subconsciente. Para nos aproximarmos dele basta uma ocorrência em cena, um lenço que cai ou uma cadeira derrubada, por exemplo.

Precisamos pensar no superobjetivo e na linha direta da ação, ter em mente tudo que possa ser controlado conscientemente. Alcançar o limiar do subcosicente, ou seja, o eu sou.Falávamos agora da nossa arte, Torstov compara-a a uma gestação, onde o pai é o autor a mãe a atriz e o filho o papel que vai nascer. Todos dependem da ação da natureza. Plantar e colher, eis a nossa lei.

Bertold Brecht - Estudo de um papel

Estudo de um papel

Bertolt Brecht

1. O mundo do autor não é o único mundo. Há muitos autores. O ator não deve identificar totalmente o mundo com o mundo do autor. Deve fazer distinção entre seu mundo e o do autor, e deve acentuar a diferença. Isto influi sobre sua conduta em relação à estrutura da peça. A estrutura da obra é o mecanismo que determina o que deve ser causa e efeito, o que deve ser efeito de uma causa e assim sucessivamente. Essa maneira de desenvolver o enredo, enfatizando determinadas situações, revela os pontos de vista do autor a respeito do mundo, e o ator deve mostrar seu desacordo com esses pontos de vista.

2. Como o ator descobre os pontos de vista do autor, esses pontos de vista que constituem a base da engrenagem da obra? Descobre-os ao pesquisar aquilo que gera contradição. Porque nem todos os pontos de vista do autor merecem o desacordo do ator. Devem ser ponto de discussão apenas aqueles que revelam o interesse do autor pelo mundo real. O ator deve descobrir esse interesse partindo da estrutura da obra, e deve estabelecer a que interesses de grupos humanos se assemelha ou serve (porque somente esses interesses podem ser considerados importantes) e a que grupos se opõem. O ator deve identificar-se com os interesses de grandes grupos para representar bem o seu papel e esses interesses, como os do ator, estão apoiados por conceitos decisivos.

3. Ao mostrar o desacordo com o mundo do autor, o ator tem a possibilidade de assinalar os limites desse mundo, suas características, e demonstrar que é combatível. Sua atitude "géstica" é a que deve ser transmitida ao espectador.

4. Permite-se que o ator se mostre atônito diante da engrenagem da peça, mas também ante seu próprio personagem (o que ele deve representar) e até diante das palavras que deve pronunciar. Mostra, atônito, aquilo com que está familiarizado. Ao falar, contradiz o que está dizendo.

5. Para representar um personagem, o ator deve estar ligado a ele por interesses, e por interesses importantes, isto é, interesses que provoquem uma transformação do personagem. O personagem terá dois eus e um deles será o do ator. O ator, como tal, deve participar da educação (transformação planificada) de seu personagem, educação que estará a cargo dos espectadores. É ele que deve estimular o público. Ele próprio é um espectador e esse espectador é um personagem a mais que o ator deve esboçar; é o segundo personagem a desenvolver. Mas, para começar, como deve delinear o primeiro personagem?

6. O personagem surge como resultado de suas relações com outros personagens. Na arte dramática da velha escola, o ator criava o personagem e em seguida estabelecia suas relações com as demais figuras. Desse personagem inventado extraía em seguida os gestos e a forma de pronunciar as palavras. O personagem surgia da visão panorâmica da peça. O ator épico não se preocupa com o personagem. Parte do zero. Conduz todas as situações da maneira mais espontânea e pronuncia as orações umas depois das outras, mas como se cada uma delas fosse a última. Para encontrar o gestus - isto é, a atitude essencial que está subjacente em cada frase ou alocução - que apoia as frases, as mais vulgares, que não dizem exatamente o mesmo que diz o texto, mas que contêm o gestus...

7. Quando o ator, já no papel que lhe coube representar, explorou todas as relações que a obra propõe, pronunciou as frases com a maior espontaneidade que lhe seja possível e as acompanhou com os gestos mais apropriados a elas, ele terá recriado o mundo do autor. Cabe-lhe, então, estabelecer a diferença entre esse mundo e o seu próprio e pôr em destaque essa contradição. Agora, como se depara com as contradições mais importantes?

Em toda obra teatral há uma opção por uma determinada seleção de relações que cada personagem deve manter. Quando as situações foram criadas apenas para proporcionar ocasião para o brilho do personagem, já está evidenciado um critério de seleção das possíveis situações. O ator não tem que estar de inteiro acordo com essa seleção. Se tem que representar uma situação que mostre a coragem do herói, o ator pode acrescentar um matiz diferente daquele proposto pelo autor. Essa coragem - que o ator vai modelando através da exata realização dos gestos que correspondem à atitude mais lógica diante das frases postas em sua boca - pode adquirir outra acentuação, graças a uma cena muito breve de mímica, a um determinado gesto com o qual se subtrai algumas frases do texto, por exemplo, alguma que indique a crueldade do herói em relação ao seu criado.


Ao mesmo tempo que mostra a fidelidade de um personagem, pode mostrar sua ambição; pode conferir um traço de sabedoria ao egoísmo de outro; pode expor as limitações do amor à liberdade de um terceiro. Do mesmo modo, ao construir o personagem, vai criando os pontos de contradição de que ele necessita.

Se, ao contrário, o personagem fosse criado pelo autor para possibilitar uma situação, nunca faltarão outros personagens que dêem verossimilhança a essa situação. Os atos qualificados como atos de valor nem sempre são executados por pessoas corajosas e - ainda que o acontecimento não o exija - qualquer personagem requer, para ser verossímil, que se possam apresentar manifestações e atitudes que não foram provocadas por esse acontecimento particular.

Stanilavski - A construção do personagem

Stanislavski -A construção da personagem
O conceito de criação da personagem reconhece que todos os seres humanos são diferentes. Como nunca encontraremos duas pessoas iguais na vida, também nunca encontraremos duas personagens idênticas em peças teatrais. Aquilo que faz suas diferenças faz delas personagens. O público que vai ao teatro tem o direito de ver Treplev (personagem de A Gaivota, de Tchekov) hoje e Hamlet na semana seguinte, e não o mesmo ator com sua própria personalidade e seus próprios maneirismos. Embora possam ser desempenhados pelo mesmo ator, são dois homens distintos com suas personalidades e características próprias. Mas não se pode vestir uma personagem do mesmo jeito que veste um figurino. A criação da personagem é um processo.

O ator precisa de uma perspectiva sobre o papel: o que ele pensa sobre a personagem e o que ele quer dizer através dela. Mas, para fazer isso, é importante lembrar que a personagem também tem sua própria perspectiva, a ótica através da qual ela percebe seu mundo. Ao longo da peça, a personagem passa pelas duas horas mais importantes de sua vida, enfrenta problemas que nunca enfrentou antes e faz coisas que nunca fez. E, portanto, muitas vezes não tem uma maneira habitual de agir. Por isso, a personagem é capaz de se surpreender e até, às vezes, ser contraditória. Nenhum personagem é completo, mesmo os heróis gregos tinham suas falhas trágicas. Modernamente, a dramaturgia nos oferece pais exemplares que se apaixonam perdidamente por travestis.

O primeiro contato do ator com a personagem se dá por intermédio do seu problema humano. Esta relação entre a situação objetiva da personagem e a íntima necessidade pessoal de transformá-la, cria uma síntese dos lados objetivo e subjetivo da personagem. A ação torna visível a vida interna e cria uma base para a experiência vivenciada. Esta síntese leva a uma visão artística do papel onde a expressão externa não está separada do conteúdo da experiência humana. Os objetivos a serem atingidos orientam a personagem ao longo da peça. A cada instante a personagem reavalia sua situação perante seu objetivo e disso surge a necessidade de agir.

É comum identificar o lado psicológico (a vida interna) da personagem com as suas emoções. Na verdade, Stanislavski, elaborador do sistema para o ator, se preocupou durante toda sua vida artística com o problema da criação da experiência verdadeira. Ele entendeu que as emoções não estão sujeitas a nossa vontade, e sim ao resultado de um processo de vida. Elas não podem ser atingidas diretamente. A ação é o indicador mais preciso da personagem. É inútil elaborar como a personagem vai agir sem saber qual ação que vai fazer.


Por ação entendemos um ato que envolve o ser humano inteiro na tentativa de atingir um objetivo específico. Na ação orgânica o desejo, pensamento, vontade, sentimento e corpo estão unidos. De fato, o homem inteiro participa da ação, por isso sua importância na criação da personagem. Agimos a partir de nossas percepções. Elas e nossas ações expressam quem somos nós.

Percebemos, avaliamos e depois agimos. O interior, que é invisível, se torna externo, visível e artístico através da ação. Entendido que as emoções surgem durante o processo de ação. “A lógica dos pensamentos gera a lógica das ações, que gera a lógica das emoções”.

A personagem se diferencia do ator de duas formas distintas, ambas relacionadas com a ação. Como indivíduos, somos capazes de empreender uma grande variedade de ações. A personagem ameaça e o ator também pode ameaçar. A personagem consola, mas o personagem também o faz. Mas o diferencia o ator da personagem não são as ações simples, individualmente (ameaçar, consolar, desejar), mas a “ação complexa” – o conjunto dessas ações simples que está dirigida a um objetivo, único, provido de coerência e lógica próprias.

Trabalhando e experimentando esta coerência ou lógica de ações que não pertencem ao ator e sim à personagem, o ator começa a entrar no fluxo de vida da personagem.

Ao longo de uma peça, a personagem é capaz de realizar um número significante de ações que constituem uma linha contínua que atravessa todo o texto. A linha contínua de ações é a linha consecutiva de ações de uma personagem que o ator desenvolve a fim de reforçar a lógica e seqüência de seu comportamento no papel. Serve-lhe da mesma forma que uma partitura serve ao pianista, dando ao seu desempenho unidade, ordem e perspectiva.

Um conceito básico de criação da personagem: ela existe a partir de sua lógica de ações. Criar a linha contínua de ações de uma personagem com sua lógica de ações envolve o ator com sua mente, alma e corpo juntos, numa pesquisa psicofísica.


A personagem se diferencia do ator no que diz respeito à lógica de ações e no que diz respeito à maneira de agir. Além da linha contínua das ações com sua coerência própria, o ator também se preocupa com as características da personagem.

A composição de hábitos de comportamento é chamada de caracterização. Muitos atores encaram seu trabalho como o descobrimento do gestual particular da personagem.
O problema da caracterização tem duas vertentes. O ser humano existe como indivíduo e como integrante de um grupo social. Dar individualidade e agregar características que situem a personagem a seus respectivos grupos sociais. As classes sociais, as profissões, as faixas etárias, demonstram comportamento compartilhado que é imediatamente reconhecível. O comportamento humano também muda de país para país e de época para época.

Os atores de A gaivota, que retrata várias camadas da sociedade russa do final do século XIX precisam ser sensíveis ao fato de que suas personagens se apropriam dos padrões de comportamento de um outro país e de uma outra época. Também, dentro dessa sociedade, as pessoas estão separadas pelas classes e funções sociais – uma ampla pesquisa é necessária para qualquer peça que fuja de nossa época atual. Mas precisamos ficar atentos a observações superficiais e tentação de criar verdades absolutas. É verdade que militares, em geral, compartilham características próprias que os diferem dos surfistas, por exemplo, mas nem todos os militares são, e pode mesmo haver um militar/surfista. O que quero dizer é que há muitas personagens pertencentes a quadros muito característicos, mas que fogem às características mais marcantes de seus quadros.

Dentro dos grupos, cada ser humano é um indivíduo com suas características próprias. E o que as determina como características individuais, ou, melhor dizendo, como modos de comportamento são peculiaridades interessantes, como um andar diferente, por exemplo, ou um andar desleixado, ou um falar monótono e agudo, uma risada histriônica, etc. Enfim, características que se somem em um indivíduo e que componham sua personalidade. É evidente que essas manifestações externas devem estar associadas as realidades interna e mais profundas da personagem.

Na descoberta de uma lógica de ação única e indispensável, o ator percebe que a personagem demonstra certas tendências de ação. Por exemplo: Treplev explode em quase todas as suas cenas, mas ao invés de reconhecermos nele unicamente um personagem explosivo, devemos estar atentos para os motivos que o levam a explodir. É preciso lembrar que o tempo da peça é o tempo em que a vida da personagem está no limite. Questionando os fatos que o levam a perder a cabeça, temos um primeiro passo para estabelecer uma fisicalidade da personagem. Temos a base de sua composição física, temos o como fazer. Ao adaptar seu corpo a situação em que se encontra a personagem, o ator começa a compor seu papel.


Finalmente, o que vai distinguir a personagem do ator é a forma como a ação da personagem é executada. Hamlet vai inevitavelmente ameaçar de forma diferente da que faria o ator, pois, além do fato de que cada ser humano ser único e a personagem ser um ser humano, para caracterizar o ator precisa recompor seu próprio comportamento. Para fazer isso, sem cair na imitação fácil, é necessário transformar os componentes da ação interna e externa que são suscetíveis ao nosso controle: ação física, estado físico, tempo e ritmo, monólogo interior, pensamentos. Este processo se estende pelo período de ensaios e temporada, e até depois.É comum um ator inexperiente e mesmo experientes rejeitarem novos modos de agir – é mais cômodo apostar na naturalidade, no espontâneo e mesmo nos clichês para compor as personagens porque compor uma personagem meticulosamente, passo a passo, rejeitando diversas tentativas até encontrar um caminho satisfatório é tarefa árdua. A descoberta de uma ação psicofísica única e indispensável da personagem, que o sintetize, significa também em certa medida, a “morte” do ator e sua “reencarnação” dentro da personagem, e isso gera medo e nem sempre é desejado pelos próprios atores.

Edvard Vasconcellos